Durante a guerra colonial eu ainda não era nascido. Manuel Roberto nasceu e cresceu nela. Quando começou a fotografar eu era criança. Quando ele vivia uma guerra colonial seguida de uma guerra civil, eu vivia o rescaldo de uma Revolução num ambiente familiar revolucionário. Lembro-me das manifestações por melhores salários, numa altura em que tudo estava ainda muito quente. Sempre associei as antigas colónias a uma guerra injusta e fratricida, onde muitos combatiam sem querer, sem acreditar em antigos impérios. De algum modo, também eu me senti um continuador da revolução mesmo sem designações mais ou menos oficiais. Os anos passaram, o mundo mudou e continuar a mudar num ciclo que infinito, cá e lá.
Na cozinha do meu tio Pedro habituei-me, em pequeno, a ver uma fotografia. Não era preta e branca e mas vermelha e preta como a do Che Guevara. Era nessa cozinha que se reunia com os amigos. Havia cartazes revolucionários nos tectos e nas paredes. Durante anos pensei que a imagem era do meu avô Rui. Mais tarde percebi que era a cara de Vasco Gonçalves, o primeiro ministro do governo revolucionário português que saiu da Revolução de Abril.
“Nem mais um soldado para as colónias”, ouvia-se nas ruas portuguesas. “A nossa guerra não é contra o povo português mas contra o colonialismo português”, proclamava Samora durante a luta de libertação nacional. O inimigo não era o povo português mas o colonialismo e opressão de uma ditadura que reprimia e desterrava os súbditos de um império decadente e assentava na guerra, no analfabetismo, obediência religião e na extrema pobreza que se vivia em Portugal e nas Colónias africanas. A ditadura era, também em Portugal, o nosso maior inimigo.
25 de Junho de 1975. Samora Machel proclama a independência. Às zero horas do dia 25 Samora abraça Vasco Gonçalves. A bandeira portuguesa desce. A bandeira de Moçambique é hasteada. Arreiam-se os escudos e os castelos. Sobe a enxada, o livro e a Kalashnikov. O livro representa a importância da educação. A enxada a agricultura. A Kalashnikov a defesa, vigilância e luta pela independência. Só há um país no mundo com uma arma automática na bandeira: Moçambique. Em 2005 abriu-se um concurso internacional para a apresentação de propostas de uma nova bandeira. A ideia era remover a arma da bandeira. Receberam 169 propostas. As propostas foram todas recusadas. A Kalashnikov continua lá.
Com a independência que punha fim a vários séculos de colonização, veio o período de paz e de todos os sonhos. Como milhares de crianças, ele era um Continuador da Revolução, uma organização criada por Samora Machel semelhante às que existiam no Bloco Leste Europeu e de ideologia colectivista. Depois veio a guerra civil. Mais guerra. Mais insuportável guerra. Roberto começou a fotografar. A guerra, as crianças, as escolas, o trabalho agrário, as manifestações, os concertos, a vida na rua. Fotografava a transformação da sociedade. Fotografava os Continuadores da Revolução.
Mas Roberto não fotografou apenas os horrores da guerra. Usou o meio da fotografia como um instrumento que lhe permitia a reconciliação consigo próprio e com os outros. Para ele, o registo de fragmentos de tempo em diferentes locais e épocas, funcionam como um meio de entender e reflectir sobre as mudanças e as ligações que delas emanam e que ditam, também eles, a sua própria transformação.
Os nossos caminhos cruzaram-se no Porto. Tornámo-nos amigos no Porto, a cidade onde ambos vivemos. Falamos sobre as revoluções, a amizade, a liberdade e o modo como cada um a viveu. Falamos sobre sonhos que temos para o mundo. Cada um, à sua maneira, tinha os seus, fossem entranhado nas memórias de histórias contadas, fosse pela dureza das histórias vividas na pele.
Juntos, queremos descobrir onde andam as nossas revoluções através de uma viagem cinematográfica que usa fotografias e as reflexões de Manuel Roberto como fio condutor para uma história de resistência onde os personagens se confundem com fantasmas que pairam no espaço e no tempo que teimam em não desaparecer.